domingo, 31 de janeiro de 2010

Texto introdutório de um mini-curso - Escuta e Música Contemporânea


A Escuta

Hoje é banal constatar: a música está por toda parte; concertos, shows, em casa, no carro, na rua (graças a múltiplos equipamentos de difusão - rádio, televisão, computador, telefone), mas também no elevador, restaurante, shows de rock de igrejas evangélicas...
Mas o que seria de fato escutar? A música, ou a maior parte dela, atravessou, no último século, as rotas do grande consumo, no que implica inclusive artifícios comerciais e submissão ao domínio técnico. A própria escuta se transformou, muitas vezes modelada por um conjunto de atitudes referentes a uma oferta de entretenimento segmentada por critérios econômicos e sociológicos.
No coração do dispositivo pode residir a escolha do consumidor: o hit-parade, do pop ao barroco. Quando o ato de comprar se eleva à condição identitária, ao modo de viver, o sucesso comercial se torna o modelo estético, a rentabilidade se torna o cânone e a regra, tanto para quem produz como para quem consome. E a necessidade de rapidez do consumo faz da espera atenta um percalço quase incontornável: esperar pode significar arriscar perder uma “fatia” do mercado. Aqui não se escuta, se consome: a música ouvida é um reencontro na área do gosto familiar, como quando pegamos latinhas conhecidas de pomarola no supermercado. Neste caso, a descoberta e a real experiência é bem mais rara, pois a variabilidade e a doação espiritual são ínfimas. A grelha harmônica gasta, a pulsação arqui-previsível, o desenvolvimento minimal, um recorte convencional...
Há também o produto da tecnofilia, onde o que se escuta não é a música mas antes a sua gravidez. Um projeto técnico-comercial pode aqui resumir o projeto estético como o estéreo resumia o espaço em dois pontos laterais. Macluhan, será o meio de fato a mensagem?
Face a algum militarismo da audição, com todos seus curto-circuitos, em que o som reificado cicunscreve todo prazer na onda passageira, só resta duvidar e ter incertezas. Qual o ritmo dos seus passos? É preciso muita confiança para abandonar seus passos e sua respiração nas mãos de outrem, nas mãos de uma obra. Mas se isto nos é dado, o tempo, fluindo em seu próprio curso, parece as vezes iluminar a surpresa de um breve momento, uma fenda no curso habitual dos dias, na graça de uma pausa ou de um suspiro, onde os pés saltam para o ar da arsis,  antes da euforia balanciada da repetição. O tempo também pode se cristalizar em espaço, como em Bach, Webern ou Xenakis, onde a experiência da passagem processual de motivos e seqüências se torna tão vertiginosa quanto uma viagem pela sua curvatura: alto, baixo, esquerda, direita, todos reversíveis entre si. Ou ainda, o tempo interior e íntimo de Cage ou Takemitsu, tempo branco e impávido, destacado de uma linha, potencialmente orgíaco.
Para escutar, é preciso estar em silêncio. Silêncio dos órgãos na capital da cura, diria Michal Serres. Silenciar em si os desejos e as expectativas. Qualquer resistência é inútil. Esperar, à mercê, submisso, disponível, mas sempre alerta. O pavilhão e o nervo auditivos sempre foram os melhores amigos do predador insaciável e da presa vigilante. Arcaico sentido, imemorial, ativado antes mesmo de nascermos. E de onde virá este medo do cavalo de Tróia? Seu paradoxo é acolher o desconhecido, a partir da surpresa da chegada do outro ao nosso forte mais íntimo. A escuta só cabe aos fiéis desta espera inicialmente passiva, ao consentimento, com algo que vem da humildade, da hospitalidade, da sensualidade, atenriores ao empréstimo dos ouvidos à ação de uma música.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Meia-homenagem a Rohmer

Ontem fui assistir o Conto de inverno, de Eric Rohmer. Sem dúvida, conhecido como um grande mestre do cinema francês, recentemente falecido, foi também um dos maiores musicólogos da história, na minha opinião. Talvez justamente por não ter a rigidez acadêmica do profissional no assunto, tratou Mozart, Beethoven, dentr e outros, com idéias novas e fascinantes, com o frescor de quem escuta profundamente, não apenas ouve.
Confesso que saí no meio do Conto de Verão, foi impossível assistir: é difícil não achar chato, dado tantos diálogos existenciais pretenciosos. Mas o Conto de inverno, graças a sabedoria de um amigo que me arrastou, me fez sentir a sutileza com que ele opera o comportamento das personagens. Apesar do "discutir a relação" contínuo que os franceses adoram, o que ele mostra, no fundo, é que mesmo o mais decente, honesto e justo dos seres humanos (no caso, a professora de filosofia),  tem sempre  um momento de egoísmo básico em relação às possibilidades amorosas, mais hora, menos hora. No caso, a maestria é deixar esse momento da nossa heroína-em-náusea para a penúltima cena. Viva Rohmer e apesar do meu desgosto, é preciso saber reconhecer: com ele encerra-se mais um grande traço do existencialismo.

domingo, 3 de janeiro de 2010

wonky, pastiches, pastéis e capitalismo

Depois de ouvir algumas pretenciosas novidades em música eletrônica popular, fico me perguntando uma série de coisas sobre o conceito de wonky, por exemplo, dentre muitas bobagens possíveis. Claro, meu marxismo fora de moda é sempre antipático. Talvez pareça haver aqui uma frouxidão e inclusividade estética, do Rave, ao Dustep, G-funk, Hip-hop mais sofisticado, Crunk, IDM, pop, e mil outras categorias. Mas é preciso dizer: o wonky e outras práticas têm um lado interessante e positivo, pois ele parece operar como um agente transgenético sobre as categorias "fossilizadas". O fato de operar em vários andamentos nos tiraria um pouco da tirania do loop banal (claro, em grande parte doce ilusão...a função continua ali hegemônica, e quando é supostamente mais "experimental", a moldura facista do recorte hipnótico não é nunca totalmente retirada...retorna invariavelmente para capturar a escuta e aprisioná-la como de costume, sem gerar "ruído" verdadeiro, no sentido da comunicação). Já o lado politicamente correto da inclusividade inclui uma valorização da internacionalização, produtores de múltiplos países etc, o que pode ser visto positivamente...kkk. Mas voltemos um pouco ao ponto:
wonky...como conceito, é bem interessante...pode indicar tanto desquantização de baterias, como outras coisas, synth em pitch bend, elaboração mínima do baixo para além do mais óbvio etc.  Há uma idéia de fazer parecer um derretimento de solidificações, fluidificação, texturas alongadas mas fugidias, como a do capital que o espalha...mas veja: sempre com um certo mito do "deslocado", do "fora de lugar", "fora de tom" (na verdade, com sons e feições ultra pasteurizados e bombardeados!), com afetações paródicas de estilo, nostalgia psíquica, algo que já foi bem analisado na discussão do "pós-moderno". Incrível é não enxergar as práticas repetidas desde os anos 60 pela milésima vez neste tipo de atitude estética, ou mesmo de qualquer surrealismo musical bem anterior, as tais gastas sopas de "significantes de futuro e de passado". Mas ponto central que encontro aqui: talvez o wonky e outras práticas "musicais" banalmente comuns de hoje indiquem o duplo mais próximo do capitalismo atual, uma forma clara de sua expressão: desejo de uma fluidez sem raízes "fixas" (aparente, evidentemente), o horror do masturbaton coletivo (ou seja, a filosofia do "tocamos junto sem fazer amor, o que vale é a auto-expressão no coletivo, pois "somos desapegados e livres"), e, claro, a manipulação de arcaísmos estruturais e de sentido, baseados em significantes "referenciais", sob um formalismo forte, e o uso da nostalgia alienadora que se traveste de falsa subversão de modismos precedentes.
o velho e caquético marx volta aqui, obrigado sempre, mas socorro meu véio...como fugir desses muros?
fazendo amor sonoro, o de verdade, e bem mais raro...raro até mesmo na música contemporânea oficial.
mas claro, sempre aparece um sparkle, um bolhazinha de experimentação surpreendente que voa para fora dos infernos... e é isso que buscamos nessas escutas...viva a música de múltiplas formas, mas com consciência da função que exercem na tal sociedade de controle....