A Escuta
Hoje é banal constatar: a música está por toda parte; concertos, shows, em casa, no carro, na rua (graças a múltiplos equipamentos de difusão - rádio, televisão, computador, telefone), mas também no elevador, restaurante, shows de rock de igrejas evangélicas...
Mas o que seria de fato escutar? A música, ou a maior parte dela, atravessou, no último século, as rotas do grande consumo, no que implica inclusive artifícios comerciais e submissão ao domínio técnico. A própria escuta se transformou, muitas vezes modelada por um conjunto de atitudes referentes a uma oferta de entretenimento segmentada por critérios econômicos e sociológicos.
No coração do dispositivo pode residir a escolha do consumidor: o hit-parade, do pop ao barroco. Quando o ato de comprar se eleva à condição identitária, ao modo de viver, o sucesso comercial se torna o modelo estético, a rentabilidade se torna o cânone e a regra, tanto para quem produz como para quem consome. E a necessidade de rapidez do consumo faz da espera atenta um percalço quase incontornável: esperar pode significar arriscar perder uma “fatia” do mercado. Aqui não se escuta, se consome: a música ouvida é um reencontro na área do gosto familiar, como quando pegamos latinhas conhecidas de pomarola no supermercado. Neste caso, a descoberta e a real experiência é bem mais rara, pois a variabilidade e a doação espiritual são ínfimas. A grelha harmônica gasta, a pulsação arqui-previsível, o desenvolvimento minimal, um recorte convencional...
Há também o produto da tecnofilia, onde o que se escuta não é a música mas antes a sua gravidez. Um projeto técnico-comercial pode aqui resumir o projeto estético como o estéreo resumia o espaço em dois pontos laterais. Macluhan, será o meio de fato a mensagem?
Face a algum militarismo da audição, com todos seus curto-circuitos, em que o som reificado cicunscreve todo prazer na onda passageira, só resta duvidar e ter incertezas. Qual o ritmo dos seus passos? É preciso muita confiança para abandonar seus passos e sua respiração nas mãos de outrem, nas mãos de uma obra. Mas se isto nos é dado, o tempo, fluindo em seu próprio curso, parece as vezes iluminar a surpresa de um breve momento, uma fenda no curso habitual dos dias, na graça de uma pausa ou de um suspiro, onde os pés saltam para o ar da arsis, antes da euforia balanciada da repetição. O tempo também pode se cristalizar em espaço, como em Bach, Webern ou Xenakis, onde a experiência da passagem processual de motivos e seqüências se torna tão vertiginosa quanto uma viagem pela sua curvatura: alto, baixo, esquerda, direita, todos reversíveis entre si. Ou ainda, o tempo interior e íntimo de Cage ou Takemitsu, tempo branco e impávido, destacado de uma linha, potencialmente orgíaco.
Para escutar, é preciso estar em silêncio. Silêncio dos órgãos na capital da cura, diria Michal Serres. Silenciar em si os desejos e as expectativas. Qualquer resistência é inútil. Esperar, à mercê, submisso, disponível, mas sempre alerta. O pavilhão e o nervo auditivos sempre foram os melhores amigos do predador insaciável e da presa vigilante. Arcaico sentido, imemorial, ativado antes mesmo de nascermos. E de onde virá este medo do cavalo de Tróia? Seu paradoxo é acolher o desconhecido, a partir da surpresa da chegada do outro ao nosso forte mais íntimo. A escuta só cabe aos fiéis desta espera inicialmente passiva, ao consentimento, com algo que vem da humildade, da hospitalidade, da sensualidade, atenriores ao empréstimo dos ouvidos à ação de uma música.