segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

mimese nas reentrâncias


Como muito estudante de pós-graduação ao final dos anos 90, gostava de ler Deleuze com uma admiração quase beatífica, talvez por influência do meu orientador, que era ou ainda é adepto dessa filosofia. Mas uma das coisas que sempre me deixou desconfiado era a história de um plano de imanência, embora não tivesse nem tenha  a pretensão nem o virtuosismo necessário para criticá-lo. Era apenas uma sensação sobre a forma mitológica de fazer filosofia e, apesar de gostar do mergulho estético provocado, ao mesmo tempo o lado mitológico me fazia me afastar e desconfiar, como quando, só para dar um exemplo, ele fala em fractais ou singularidade. Com o tempo, percebia que esta filosofia não teria se tornado fetichista à toa, onde os conceitos geram efeitos discursivos com mais facilidade do que com outras filosofias de grande interesse e riqueza da mesma época, talvez com a excessão de Derrida, que também foi tão fetichizado. Inclusive porque os conceitos-feitiço, com nomes poderosamente fetichistas (plano de tal, devir-algo, rizoma, territorialização etc) passam a servir de carimbo mais facilmente.
Mas logo apareceram alguns virtuoses capazes de fazer tremer e desmontar essas bases mitológicas. Um exemplo forte veio do Rio. Por meio de uma reconsideração  totalmente diferente da mimese e das representações-efeito,  Luiz Costa Lima demonstrou, com respeito e independência, o buraco mitológico na ideia de plano de imanência em Deleuze. Mesmo sem considerar tudo que vem de religioso das filosofias “orientais” a respeito, mesmo desconsiderando um nietzchianismo ou um spinozismo bastante respeitáveis, a ideia de tratar a imanência como base de criação ou base sustentável de conceitos de forma independente da mimese facilmente apontaria para estes buracos de ordem mais mitológica.
Com o tempo, percebí que se Deleuze fala em “singularidade” quanto ao plano de imanência e sua povoação de conceitos, deveria considerar tudo aquilo que já existe e é retraçado no fazer de qualquer criação ou mesmo o que a matemática trata no plano da transição de representações ao falar de singularidade, como encontro  ou local de transição das formas de representações. Nem precisaríamos da matemática. Mais globalmente, basta considerar a relação e as lacunas formadas pelas linhas remexidas como operação de criação inevitavelmente mimética (no sentido de Costa Lima ou de um Lacoue-Labarthe). É que um limite deleuziano está em identificar mimese com a representação fixada, ou mesmo demonizada (com a simples imitatio dos latinos ou como aquilo que um primeiro Foucault puto com os sorbonnards critica ao falar do lado de Fora, de um aberto mitológico, embora, no fim da vida, tenha mudado de ideia e passado a falar justamente das linhas de transição...). Este espaço ilimitado ou absoluto mitificado como plano de imanência é uma ficção sobre um deserto infinito povoado de conceitos e velocidades infinitas. Ora, como falar em infinitude, em “Um-todo absoluto”, em horizonte sem limite, sem um teor religioso ao conceituar este plano? É que falar em imanência é inescapável. Este é um lugar por onde o Spinoza padre vira o tal príncipe dos filósofos de Deleuze. Se a crítica à ideia de transcendência é extremamente válida, aquela dirigida ao fetiche de uma imanência que permite Abertura ao mundo ou ao Fora não deve ficar muito atrás na mitologia da criação. A reconsideração da mimese fora da imitatio e fora da identificação com a representação abriu um caminho felizmente mais modesto, nem imanentista, nem transcendentalista. Isto tudo não desmerece o grande valor do pensador, apenas demonstra  o porquê de uma propensão mais religiosa a respeito da sua filosofia e de seu uso fetichizado, em geral levando à mitificação do trabalho de criação, supostamente liberta das representações.